O relato de um torcedor do Corinthians que viveu momentos de tensão para ver o jogo na Bombonera
Opinião de Rafael Castilho
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O ônibus que havíamos reservado para nos levar até a Bombonera começou a fazer um caminho diferente. Já havia vivido uns meses em Buenos Aires e conhecia relativamente bem esta cidade. Os policiais e suas motocicletas nos acompanhavam. Em princípio, não fiquei preocupado, certamente seria um roteiro para garantir maior segurança aos torcedores.
Aproveitávamos aquele tempo da melhor forma. Cantando pelo Corinthians, com muita emoção. Se via nos rostos das pessoas grande satisfação e felicidade. Corinthians grande! Sempre altaneiro. És do Brasil (o que? O que?). O clube mais brasileiro. Corinthians! Corinthians! Não preciso explicar muito como o clima daquele momento era pra lá de especial.
Mas o tempo foi passando. Comecei a ficar preocupado. Olhei pela janela e vi que existia uma grande fila de ônibus. Considerei descer e pegar um taxi. Já não era possível. Quando os ônibus ficaram estacionados nos arredores do estádio, estávamos cercados pela polícia. Não permitiam que ninguém desembarcasse. Bom, considerei outra vez que estavam nos protegendo.
Percebi da pior forma que aquilo tudo era uma arapuca. Éramos como pássaros enjaulados. Não podíamos sequer colocar a cabeça pela janela e tomar um ar. Olhei para o relógio, vi que haveria ainda uma caminhada para o estádio. Conclui que não chegaríamos na hora do jogo.
Ou seja, tudo o que planejamos não seria realizado. Não veríamos o Coringão no estádio.
Quem economizou dinheiro, quem conseguiu uns dias de folga, quem esperou tanto por aquele momento deveria revisitar seus sentimentos e controlar suas frustrações. Não era, evidentemente, tarefa fácil. As pessoas foram ficando nervosas. No meu caso, as emoções variavam entre a indignação, pela injustiça que ocorria, a fúria, a tristeza por não ver o meu time jogar e a claustrofobia. Detesto ficar preso em qualquer ambiente. Sentia-me asfixiado.
Alguns desceram do ônibus para argumentar com os policiais e solicitar permissão para sair e caminhar para o estádio. Sabíamos que podia ser uma situação com encontro de torcidas, mas acreditávamos também que era nosso direito. Ninguém ali estava feliz por estar preso dentro de um ônibus.
Alguns passavam mal, outros queriam ir ao banheiro. A resposta da polícia foi surreal. Borrachadas eram souvenirs de recordação da cidade. Alguns policiais faziam gestos obscenos para os torcedores.
Soubemos do gol do Corinthians dentro do ônibus. Comemoramos. Emoção e indignação caminhavam juntas. Quando enfim nos liberaram, havia ainda uma boa caminhada para o estádio. Subimos as escadarias infinitas da Bombonera. Depois de horas dentro do ônibus, alguns precisavam ir ao banheiro. Não havia. Os homens se aliviavam como podiam. As mulheres, pra variar, sofriam mais.
Para entrar na arquibancada não havia espaço. Uma escadaria que dava acesso estava estrangulada com pessoas se amontoando e se acotovelando. Pensei que pudesse ocorrer uma tragédia como houve nos anos oitenta em Liverpool. Àquela altura não me fazia sentido algum o Corinthians jogar a Libertadores. Não me fazia sentido algum as torcidas dos clubes darem tanta importância para uma competição como aquela. Tudo parecia ser muito ridículo. Será que só uma tragédia com dezenas de mortos iria fazer as autoridades desportivas repensarem aquilo tudo?
Uma mulher teve um desmaio repentino. Meu amigo que é médico iniciou um pronto atendimento. Já era início do segundo tempo. Ele foi um dos agredidos pela polícia. Decidiu que já bastava. Voltou para o hotel e desistiu de ver o jogo.
Eu me inseri como pude naquela multidão. Meus amigos sabem que sou muito emotivo quando se trata de Corinthians. Me emocionei. Gastei toda a voz que eu tinha. Tive vários pensamentos. Me dei conta da grandeza do Corinthians. No fundo, todas aquelas agressões tinham uma razão de existir: a tentativa de calar a nossa voz. Foi assim desde o início. Só não esperava isso de um clube tão importante como o Boca Juniors. O respeito que eu tinha pelo Boca se dissolveu em alguns segundos. Um clube verdadeiramente grande não precisa fazer aquilo tudo. Não precisa temer a força de nenhuma torcida rival. Lembrei daquele grito dos anos 90: “el el el, ninguém pode com a Fiel”.
Olhávamos para os lados e na torcida do time da casa algumas pessoas imitavam macacos para nós. Infelizmente, dessa vez não foi apenas uma pessoa, foram alguns. Era uma pena. As coisas estão muito ruins com a humanidade. Amar o Corinthians é também um alívio. Torna minha vida encantada. Ajuda a segurar a onda das coisas desse mundo.
Na torcida do Corinthians ouvíamos protestos: “racistas”, “racistas”. Era isso que eu ouvia. Pelo menos a imensa maioria da nossa torcida ainda tem consciência crítica. Enquanto que em vários estádios pelo mundo as torcidas, e o futebol como um todo, se tornaram cápsulas para a expressão do ódio e do racismo, a torcida do Corinthians, para variar, é a resistência.
Por isso nos incomodou tanto o que ocorreu no jogo anterior em Porto Alegre. Não poderíamos sequer imaginar um jogador vestindo a camiseta do Corinthians proferindo uma ofensa racista. Como não houve provas, pelo menos até agora, preferimos acreditar nas palavras do nosso atleta e que o jogador do Internacional não mentiu, mas ouviu outra coisa. Um amigo meu que é negro me disse que jamais poderia acusar qualquer pessoa sem provas, porque ninguém mais que o povo negro sabe o que é sentir na pele a injustiça, o que é ser acusado de alguma coisa injustamente.
Do alto da arquibancada dava pra ver o bairro da Boca. Casas humildes numa cidade cada vez mais empobrecida, como a nossa, inclusive. Curioso perceber que sentimentos como o racismo afloram na sociedade quase sempre quando existe degradação e pessoas que se sentem desmoralizadas. Precisam se sentir superiores de alguma forma. Tentar acreditar que são alguma coisa para não enxergar a própria irrelevância e mediocridade.
Nossa torcida gritou muito durante o jogo. Fizemos de tudo pelo Corinthians. Pensei em tantos jogos que estive apoiando o Corinthians. Agradeci a Deus por ter essa oportunidade. Chorei. Rezei. Decidi que faria tudo outra vez. Tudo tem valido à pena. Não há arrependimento. Tudo o que fiz pelo Corinthians foi quase nada. Porque o Corinthians trouxe felicidade na minha vida. O Corinthians me fez melhor como pessoa. O Corinthians me fez amar mais e melhor. O Corinthians me trouxe encanto. O Corinthians faz a vida valer à pena.
Vai, Corinthians!
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.