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Carta aos Corinthians 01: Falta de ar
Victor Farinelli

Victor Farinelli é um jornalista brasileiro e corinthiano residente no Chile, colabora como correspondente de meios brasileiros como Opera Mundi, Carta Capital, Revista Fórum e Carta Maior.

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Carta aos Corinthians 01: Falta de ar

Coluna do Victor Farinelli

Opinião de Victor Farinelli

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Carta aos Corinthians 01: Falta de ar

Eu era um dos 35.974 pagantes naquele dia do Pacaembu

Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians

Meu nome é Fred e eu quase morri muitas vezes. A primeira foi há quase uma década, coisa de quatro ou cinco segundos, um lapso de vida tão curto, mas que eu não esqueço até hoje. Cinco segundos em que não conseguia respirar, em que sentia que ia morrer, no momento em que o Corinthians me proporcionava uma das maiores alegrias da minha vida. Hoje, dez anos depois, diante de um problema de saúde real, eu me seguro naquela lembrança em uma estranha estratégia que desenvolvi pra tentar sobreviver.

A lembrança é de uma noite de maio que parecia agosto, pelo frio e pelo medo de que qualquer coisa ruim poderia acontecer. Uma noite fria de 2012, quando o Corinthians jogou contra o Vasco, em meio a um turbilhão de emoções na minha cabeça e no meu coração.

Pra começar, a gente tinha que quebrar uma zica nas quartas dessa merda de Libertadores. Pra isso, era preciso ganhar e não dar o gol de visitante pros caras, e confiar num goleiro que ninguém conhecia, um tal de Cássio, que veio da Holanda.

Eu sempre ia no estádio com a Débora e os irmãos dela, Denilson e Diego. A gente era amigo de infância, crescemos juntos, mesmo bairro, mesma escola. O Diego quase me encheu de porrada quando descobriu que eu estava namorando a irmã dele escondido – o Denilson meio que sempre soube que ia rolar, e sempre foi de boa com isso.

Eu e a Débora já estávamos namorando. Lembro até hoje minha alegria na filinha pra comprar as entradas. Naquela época, nem todo mundo tinha Fiel Torcedor ainda, e muito menos a gente que morava em Sapopemba. Meu esquema era no tradicional mesmo: sair rapidão do Senac, passar no guichê do estádio e garantir o meu e os da galera.

Era um dos primeiros jogos que eu e a Dé iríamos juntos, como casal já assumido. A gente era lindo juntos e mais ainda vestidos de Corinthians. Na volta pra casa, passei na casa dela, como sempre fazia, pra mostrar as entradas, e a encontrei chorando, inconsolável. Seu Cláudio, o pai dela, havia sofrido um acidente grave de carro e estava internado. Os três tinham problemas com o velho, como toda família tem, mas na hora do aperto, nessas horas em que a gente lembra que a morte é um lance que pode acontecer a qualquer um e a qualquer momento, as coisas mudam de figura.

A Dé me viu e correu pra me abraçar. Foi um abraço estranho, doído. Uma das mãos dela chegou a apertar minhas costas até arranhar. Depois veio o Diego e também abraçou a gente – foi a primeira vez que ele se mostrou um pouco amável desde que soube que estávamos juntos.

A mãe deles era falecida. Sem o pai, eles ficariam sozinhos. A gente foi até o hospital, o seu Cláudio estava mal mesmo. Teve traumatismo craniano, quebrou algumas costelas e teve algum tipo de afetação pulmonar que dificultava a respiração. Eu aproveitei de doar sangue pra ele e tudo. O hospital passou na frente de um monte de gente que estava nos corredores esperando atenção, devido à gravidade da situação.

Nós saímos de lá horas depois. A enfermeira do plantão teve que insistir, quase aos gritos, em que nossa presença lá já não ajudaria em nada na recuperação do Seu Cláudio. Só naquele momento da volta pra casa é que eu arrumei tempo pra contar pra Dé que tinha comprado as entradas pro jogo de volta da Libertadores com o Vasco. Estávamos no metrô, e foi a nossa primeira briga.

"Jogo?! Caramba Fred, meu pai tá ferrado lá no hospital e você quer que eu vá em jogo?! Você acha que eu tenho cabeça pra isso agora? Tá me zoando? Put… ", e continuou com um monólogo de mais de cinco minutos, recheado de palavrões, alguns dos quais eu mudei aqui no relato pra não chocar os leitores.

Podem me achar meio ignorante ou insensível, mas nos primeiros segundos eu cheguei a pensar que ela estava de zoeira. Só percebi que era sério quando vi que o Denilson estava segurando, pra que não me desse uns tapas ali na frente de todo mundo, apesar de que os gritos já faziam com que todas as atenções do vagão fossem pra nós.

A gente nem se despediu na saída da estação, quando eu tomei o rumo de casa. Se passaram vários dias em que a Dé mal atendia minhas ligações. Eu queria que ela espairecesse a cabeça e achava que o jogo era uma ótima opção pra isso. Quando fui até a casa deles, o Denilson me interceptou na escada, antes de chegar no apartamento.

"Mano, eu passo essas entradas pra uns camaradas ali do outro bloco, que ficaram sem. Eles até pagam a mais e você sai com uma grana. Não insiste nisso que você já viu que vai dar merda com ela".

"Mas por que ela tá com isso agora? A gente sempre disse que o Coringão é maior que tudo, que a gente é louco. Não tem essa, a gente sai um pouco da realidade, esquece um pouco dos problemas, é até bom, depois vai ter tempo pra se preocupar".

"Tenta entender, cara. Ela tá rezando todo dia, várias vezes por dia. Ela visita o hospital até quando não deixam entrar. Quer fazer parte, de alguma forma, da recuperação do pai. Talvez nem sirva pra nada, mas é importante pra ela".

Não dei ouvidos. Tentei falar com ela, e ouvi o que não queria. A gente quase terminou aquele dia. Eu insisti na ideia de que ir no jogo seria bom, e ela me respondeu dizendo que: “a única coisa que me faria bem é ter você bem longe de mim”.

Saí dali com uma dor enorme, com medo de que aquela raiva dela nunca fosse terminar. Fui ao jogo sozinho. Os irmãos também decidiram não ir – o Diego eu acho que queria, mas preferiu não contrariar a Dé.

Aquele percurso até o estádio foi solitário. Cercado de milhares de pessoas que também marchavam na mesma direção, esperançosas por uma vitória. Eu pensava em muita coisa, menos no jogo. Todas essas muitas coisas tinham que ver com a Débora, mas também com o Corinthians: nossa amizade de criança e o amor que nasceu entre nós sempre tiveram que ver com a nossa paixão pelo Corinthians. Fomos juntos a vários jogos. Em nosso primeiro beijo estávamos ambos com o manto, e foi embalado por centenas de abraços de gol anteriores, e por milhares de beijos de gol posteriores.

De repente, quando eu me dei conta, eu estava lá no tobogã. Sozinho, cercado por milhares de pessoas. Olhei no bolso da camisa, pouco antes do jogo começar, e vi a entrada da Dé. Não consegui passar pra frente, ou não quis passar. Queria algo pra lembrar do quanto eu precisava dela ali comigo.

O apito inicial me transformou. A cabeça parecia foi transportada instantaneamente daquela melancolia pra outro estado, o da paixão alvinegra, e eu comecei a gritar como louco e a sofrer como louco, como o Corinthians sempre faz comigo.

O jogo foi muito difícil. Assim como na ida, o Corinthians tinha uma dificuldade enorme em chutar com perigo no gol de um Vasco todo na defesa. Acho que até o Eurico Miranda estava naquela área. A Fiel gritava com tudo: “Corinthians minha vida, Corinthians minha história, Corinthians meu amooooooor…”.

Eu gritava junto, era mais uma das vozes que empurravam o time pra ver se saia logo aquele gol. Mas ele não veio, em um jogo chato, com ambos os times mostrando mais medo de perder.

Chegou o intervalo. Minha cabeça saiu rápido da concentração no jogo, e acho que houve uma espécie de mudança de pressão. Fiquei meio tonto. A Dé voltou com tudo à minha mente, e junto com ela muitas coisas: saudades, remorso, pena, algumas lágrimas que consegui espalmar pro lado.

Em algum momento, cheguei a pensar que estaria melhor vendo o jogo na casa dela, ao lado dela, segurando a mão dela. Torcer por aquela vitória era tão importante quanto dar uma força naquele momento que eles passavam, e eu podia estar fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, se tivesse tomado outra decisão.

Começou o segundo tempo e minha cabeça foi transportada novamente praquele estado de concentração no jogo, mas que, dessa vez, era interrompido várias vezes pela imagem da Débora e a sensação de que eu queria tê-la ali comigo, ou estar com ela, mesmo que em outro lugar. Mas continuava tentando focar no jogo. “Corinthians minha vida, Corinthians minha história, Corinthians meu amooooooooor”… E toda vez que falava em “meu amor”, era nela que eu pensava.

O jogo continuou tenso pra caramba, até que, em um certo instante, meu coração quase parou. O Alessandro perdeu a bola pro maldito do Diego Souza, que disparou sozinho.

Senti algo estranho naquele momento, uma coisa de quatro ou cinco segundos, um lapso de vida tão curto, no qual eu não conseguia respirar, sentia que ia morrer. O Pacaembu inteiro já estava vendo aquela bola no gol ainda durante o percurso, e o cara foi chegando, chegando e chutou… PRA FORA!!! Graças àquele goleiro monstro, que deu um toquinho na bola com a ponta da luva, e evitou que a nossa história na Libertadores fosse como em tantas outras vezes.

Depois de sobreviver àquele momento, que já não conseguia separar as emoções. A vontade de ganhar aquele jogo e a vontade de estar com a Débora começaram a se tornar a mesma coisa. Eu queria o gol do Corinthians, mas sentia que, se viesse, eu lamentaria não poder comemorá-lo com ela.

Até que veio aquele escanteio. Alex cobrou com perfeição. Paulinho saltou como um deus, aquela cabeçada que nenhum corinthiano pode esquecer. Não consegui gritar um dos gols mais importantes da história do Corinthians. Apenas chorei, chorei muito, fiz um gesto patético com os braços como querendo abraçar alguém que não estava lá.

Aquele gol foi uma espécie de fim da maldição. Não era uma final, mas tinha um simbolismo. Era o sinal de que aquele ano tinha que ser nosso, não podia não ser.

Ao mesmo tempo, aquela emoção me dizia que, junto com o fim da maldição, todos os erros podiam ser perdoados. Se era o fim dos erros do passado, isso incluía o passado recente, que precisava ser consertado, em nome de um futuro que tinha que ser: o Corinthians tinha que ser campeão da Libertadores e eu tinha que estar com a Dé.

Nunca entendi porque me faltou o ar na hora daquela jogada do Cássio. Senti o mesmo, novamente, quando o jogo estava pra acabar, mas não sei por quanto tempo. Quando me dei conta, um sujeito que eu nem conhecia me segurava pelos ombros e me dizia, sorrindo “calma cara, não desmaia, já acabou, tamo classificado!!!”.

Voltei pra casa sozinho, aliviado, ansioso, feliz. Sabia que tudo depois daquilo era esperança.

Nos dias seguintes a Dé continuou me evitando. Seu Cláudio terminou falecendo antes da semifinal contra o Santos. Eu fui no velório. O Denilson forçou um pouco a barra pra gente conversar, e terminamos nos abraçando, entre lágrimas e pedidos de desculpa de ambos os lados.

Com o tempo, o namoro e a paixão pelo Corinthians voltaram com tudo. Só não fomos na final porque faltou grana, mas comemoramos aquele título com tudo. Em meio aos abraços, a Dé começou a chorar e a falar do pai, das saudades, até ficar um silêncio de alguns segundos, que foi quebrado pelo irmão lembrando que o velho era são-paulino, e a gente riu – pensei que talvez o seu Cláudio também estaria rindo de alegria vendo aquela cena.

O tempo passou, e em janeiro do ano passado, eu me vi novamente com falta de ar, mas desta vez por um problema de saúde real. Um vírus que se espalhou pelo mundo inteiro, e que só no Brasil já matou mais de meio milhão. Eu fui um dos infectados que desenvolveu sintomas. Apesar de ter menos de trinta anos e não possuir comorbidades, o bicho entrou e arrasou os meus pulmões. Dizem que peguei uma dessas variantes mais perigosas, tive que ser intubado e tudo.

Uma vez internado, me vi um pouco como naquele dia no Pacaembu. Pensei na minha mulher. Eu e a Débora nos casamos e temos uma filhinha – a Gabi, que recebeu o nome de uma craque do time feminino, porque a Dé é fanática pelas Brabas.

Como naquele dia do jogo contra o Vasco, o pior da internação foi estar longe dela, e da minha filha. Como naquele dia, eu era um cara sozinho, em um hospital cheio de pacientes sofrendo com o mesmo problema. Eu tive a sorte de estar sendo tratado. Alguns estavam esperando liberar um leito ou um equipamento.

A falta de ar quando se sofre de covid é horrível, porque a ação do vírus já não é algo que se pode controlar. Eu pensava nelas. Sabia que a Dé estaria fazendo o mesmo ritual que fez durante a doença do pai, e tive medo de ter o mesmo desfecho trágico, pra mim e pra ela. Comecei a usar aquela lembrança de 2012 como uma espécie de mantra, tentando ver aquilo tudo como um sofrimento necessário pra superar uma maldição.

Talvez, naquele momento da intubação, eu era o Cássio tentando evitar o gol do Diego Souza, e tinha que fazer com que aquela bola fosse pra fora, mesmo que com a ponta dos dedos, com o pouquinho de pulmão que sobrava. Como em 2012, era preciso lutar e sobreviver, porque alguma hora vai chegar o gol do Paulinho, e depois eu iria sair e me reencontrar com a Dé e com a Gabi.

Foi o que aconteceu. Passei duas semanas entre a vida e a morte, comecei a melhorar aos poucos, até que a infecção foi cedendo. Mesmo depois de retirar o respirador artificial, ainda tive que ficar um tempinho em recuperação e fisioterapia, até que me deram alta.

Quando voltei pra casa, minhas meninas me deram o abraço mais gostoso da minha vida. A Dé contou que ela já havia tomado uma dose da vacina, e o médico disse que por ela estar amamentando, a Gabi também poderia estar recebendo alguns anticorpos. Eu teria que esperar algumas semanas, mas já estava ansioso pra tomar também.

Este ano, quando o Corinthians anunciou a volta do Paulinho, eu perguntei pra Dé ela estava feliz, já que, dez anos depois, teríamos Paulinho e Cássio juntos de novo em uma Libertadores. A resposta dela foi a melhor: “nenhum retorno pode ser melhor que o seu voltando daquela merda de hospital”.

Veja mais em: Libertadores da América.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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