Modelo da NFL no Timão? Entenda o debate sobre uma possível 'SAF do povo' no Corinthians

Opinião de Marina Borges
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Gestão Augusto Melo tem exposto as fragilidades internas do Corinthians
Foto: Wanderson Oliveira / Meu Timão
A estrutura administrativa do Corinthians vem sendo alvo de críticas crescentes, tanto por parte da torcida quanto dentro do próprio clube. Problemas financeiros, falta de transparência e decisões questionáveis nos bastidores estão fazendo com que parte da torcida — e até mesmo dirigentes — debatam sobre modelos alternativos de gestão.
E é justamente nesse cenário que o nome do Green Bay Packers, franquia da NFL (liga de futebol americano dos Estados Unidos), tem aparecido com mais frequência nos bastidores de Itaquera — ainda de forma tímida e informal, é verdade, mas não por acaso.
Para quem não conhece, o Green Bay Packers é o único time entre os 32 da liga de futebol americano dos EUA que não pertence a um dono bilionário ou fundo de investimento. Fundado em 1919, o clube é gerido por uma estrutura comunitária: são mais de 537 mil acionistas, que compraram cotas simbólicas sem direito a lucro, mas com direito a voto e voz nas principais decisões do clube.
É uma organização sem fins lucrativos que prioriza sustentabilidade, governança e transparência — uma palavra que soa quase como utopia no vocabulário do futebol brasileiro.
Enquanto por aqui o torcedor, na maioria das vezes, é tratado como cliente passivo e mal-informado, o Packers é um exemplo sólido de como a comunidade pode estar no centro da estrutura de um clube.
Uma ideia que pode encantar, especialmente quando pensamos em instituições como o Corinthians — que têm uma torcida apaixonada, engajada e disposta a defender o clube até o fim. Mas até que ponto esse modelo seria viável no nosso contexto?
O que está (de fato) em debate no Corinthians
O que se discute no momento é algo ainda embrionário. O tema já foi citado por figuras como Rozallah Santoro, ex-diretor financeiro do Corinthians, e voltou à tona em conversas entre dirigentes e membros da torcida. Inclusive, Rozallah falou explicitamente sobre o assunto no seu Instagram nesta quarta-feira:
Enquanto continuarmos procurando os culpados no passado, maquiando números, gastando mal e empurrando o problema pra frente, o buraco só vai aumentar. O caminho é um só: um novo modelo de gestão que enfrente a realidade.
Há quem veja com bons olhos uma "SAF do povo", na qual torcedores possam investir no clube de maneira transparente, com direito a acompanhar decisões, participar do debate e cobrar.
Outros rejeitam qualquer mudança estrutural, seja por medo da perda de identidade ou por interesses políticos — o que não surpreende, dada a tradição de personalismo na política corinthiana. Além disso, a relação — errônea — com o termo "SAF" é suficiente para uma postura contrária.
Por isso, é importante frisar que esse modelo não tem relação com a SAF como conhecemos no Brasil — como as adotadas por Botafogo, Cruzeiro e Vasco. No modelo dos Packers, o clube não é vendido a um empresário ou grupo de investimento.
O que acontece no clube da NFL é uma espécie de “sociedade civil esportiva”, onde milhares de torcedores são donos legítimos do time, com direito a voto e participação real. É a antítese da concentração de poder que temos visto se repetir no futebol brasileiro.
Na teoria, o modelo do Green Bay Packers pode soar como um respiro democrático. Na prática, porém, há obstáculos reais para qualquer tentativa de adaptação no Brasil — e nenhum deles envolve a transformação do Corinthians em uma SAF, algo que não é defendido aqui.
O primeiro desafio é jurídico: o futebol brasileiro ainda carece de mecanismos claros que permitam a participação coletiva efetiva na gestão dos clubes. A legislação vigente foi pensada majoritariamente para clubes-empresa e para o modelo de SAF, deixando de lado alternativas mais comunitárias, como consórcios de torcedores ou estruturas de cogestão associativa.
Depois, há a barreira cultural. A forma como os clubes são administrados no Brasil ainda é marcada por improviso, interferência política e relações opacas. Diferente dos Estados Unidos, onde a NFL opera como uma liga estruturada sob rígidas regras de governança corporativa, aqui ainda engatinhamos em transparência e controle institucional.
E por fim, a questão financeira. O Packers sobrevive como exceção dentro de um sistema que distribui receitas de forma igualitária entre os times, o que assegura competitividade mesmo para mercados pequenos. No Brasil, a desigualdade entre clubes é colossal — tanto na divisão de cotas de TV quanto em patrocínios, o que torna qualquer tentativa de autossuficiência coletiva ainda mais desafiadora.
Por que ainda assim vale discutir?
Porque o Corinthians precisa pensar além do curto prazo. O clube vive um momento delicado: dívidas que superam R$ 1 bilhão, receitas comprometidas com a Arena, dependência de acordos pouco transparentes e uma dificuldade crônica de planejamento.
A democracia corinthiana, tão valiosa na sua origem, hoje parece sequestrada por grupos políticos que se revezam no poder, enquanto o torcedor comum vê as decisões passarem por cima de sua cabeça.
É nesse cenário que modelos alternativos de administração têm sido debatidos — e é fundamental deixar claro: não se trata aqui de defender a venda do Corinthians a um investidor privado, como nos casos de SAFs adotadas por outros clubes.
Ao contrário: o modelo comunitário do Green Bay Packers vai na direção oposta, preservando a identidade popular do clube e colocando o torcedor no centro das decisões, como verdadeiro dono do time.
Segundo o jornalista Luis Fabiani, da Rádio Bandeirantes, já há uma iniciativa no Corinthians em estimular o debate público a respeito de uma troca no modelo administrativo. Se essa discussão for mesmo aberta, que seja para devolver o clube ao povo — e não para entregá-lo de vez a um novo tipo de dono.
Inspirar-se no exemplo do Packers não significa copiar um modelo estrangeiro ao pé da letra. Significa defender princípios fundamentais: participação comunitária, transparência, sustentabilidade e visão de longo prazo. Significa reafirmar a crença de que a força da Fiel pode — e deve — ter voz ativa dentro do clube, não apenas nas arquibancadas ou em vaquinhas pela internet.
Se é possível? Ainda não sabemos. Mas é necessário começar a discutir. Tempos de crise pedem mudanças, e o que não dá mais é para manter o Corinthians refém da política de ocasião, das promessas eleitoreiras e da ausência de um projeto real de futuro. Precisamos de uma ruptura — mas que venha pela base, pelo povo, pela democracia. Nunca pela venda do nosso escudo.
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.