RENADSON
October 26,2015
Por André Kfouri
O diálogo aconteceu no restaurante do centro de treinamento do Corinthians, em algum momento da temporada de 2014. Fábio Santos e Renato Augusto se dirigiam ao jantar, na véspera de um jogo, trocando ideias sem importância. A conversa tomou o rumo de algo relacionado à Seleção Brasileira, deixa para Fábio emendar uma provocação elogiosa ao amigo:
- #$!@%, Renato, se não fosse esse seu joelho, você estaria em algum time grande da Europa, jogaria na Seleção Brasileira...
A resposta de Renato, aceitando o tom jocoso que às vezes envolve argumentos sérios, foi completamente diferente do que Fábio Santos esperava. A tremenda amizade que os une permite o que podemos chamar de troca de farpas carinhosas:
- Olha, Fábio, se não fosse esse meu joelho, você nunca teria me conhecido...
Renato Augusto sabe exatamente do que é capaz. Mais do que isso: ele sabe exatamente do que seria capaz de fazer se seu joelho direito colaborasse. Um dos testemunhos mais valiosos da capacidade do meio-campista do Corinthians – para muitos, o principal jogador do time e do Campeonato Brasileiro – é a maneira como ele se adaptou à limitação imposta pela articulação “defeituosa”, convertendo-se em um jogador diferente do que ele gostaria de ser, mas no melhor jogador que ele poderia ser.
Ortopedistas e fisioterapeutas costumam dizer que há três tipos de joelhos: o bom, o ruim e o operado. O bom pode ficar ruim, o ruim pode ser operado, o operado jamais será bom como um dia foi. O joelho direito de Renato Augusto era bom, ficou ruim, hoje é – mais de uma vez – operado. O status impõe dores, inchaços, inflamações, tratamentos e fisioterapia. Acima de tudo, impõe paciência. Restringe a carga de trabalho em treinos e impede que Renato seja o jogador que os ingleses chamam de “box-to-box”, aquele que trabalha nas duas dimensões do jogo, na faixa de campo entre as áreas. Fábio Santos tem razão: seu amigo tem futebol e neurônios para uma carreira internacional formidável, o que lhe falta é um joelho bom.
Renato poderia ser um teimoso, que se recusa a aceitar um problema e o enfrenta fingindo que ele não existe. Ou um deprimido (não leia o termo em seu sentido patológico. Depressão é uma doença que merece o respeito de todas as outras, e para a qual há tratamento. Falo aqui de comportamento.), que passa os dias se perguntando o que fez para merecer tamanha infelicidade. A quantidade de lesões e infortúnios – lembre-se que Renato já fraturou os dois lados da face... – pode até tê-lo levado, e não faltariam motivos para isso, a um lugar sombrio e solitário. Mas seu amor e interesse pelo jogo o trouxeram de volta, com um papel diferente do que ele imaginava. A habilidade para realizar diferentes funções o transformou no jogador que realiza todas. Renato não é uma peça que pode ser utilizada de diferentes formas, por seu talento para improvisar. Ele é a peça que se molda aos diferentes encaixes. Pense nele como um aparelho de GPS: você está dirigindo o carro, mas ele está dirigindo você.
Isso é o que Renato faz com o meio de campo do Corinthians, o setor que distância o time de Tite de seus concorrentes. Ele colabora com Ralf no trabalho “sujo”, recua para dar suporte às aventuras de Elias no campo ofensivo, e surge na companhia de Jadson para criar e controlar. Se houvesse uma forma de medir a influência de um companheiro no desempenho de um jogador, Renato apareceria com altos índices de responsabilidade pelo sucesso dos que jogam a seu lado. Jadson parece ser o principal beneficiário, por brilhar no espaço criado pela preocupação dos adversários com Renato Augusto. Juntos, como se verifica nas redes, eles dão origem a Renadson, o camisa 8+10.
Tomemos como exemplo o gol do Corinthians contra o Flamengo, no último domingo. Renato é quem inicia a jogada, ao dominar, de costas para o gol adversário, uma bola enviada pela própria zaga. Ele trabalha com Guilherme Arana na lateral, orientando o reinício do movimento com um passe para Gil, no campo de defesa. Ao se oferecer para receber novamente a bola e se virar para o campo do Flamengo, Renato representa a ordem para o começo de uma jogada treinada, em que os papeis de todos os envolvidos são conhecidos. Ralf recua, em atitude protetora, e Elias se aprofunda pelo centro do ataque, ativando a preocupação dos zagueiros. O movimento crucial de toda a operação é a aparição de Jadson entre as linhas, que dispara o efeito dominó que termina por fazer desmoronar a defesa do Flamengo. Quando o meia recebe a bola, duas coisas acontecem simultaneamente: Malcom faz a diagonal da esquerda para o meio, como opção de passe; e o zagueiro rubro-negro César Martins, respondendo a um alarme interno que o obriga a fazer algo, aproxima-se desesperadamente de Jadson, abandonando sua própria posição. Pronto.
O que acontece a seguir é um perfeito exemplo da “pausa que acelera”, um conceito difícil de se ver na prática. O passe de Jadson para Malcom é um toque quase despretensioso, uma bola rolada para o espaço vazio (exatamente onde César Martins deveria estar), que encontra o atacante corintiano no final de seu movimento diagonal. A jogada ganha velocidade com um passe lento. Quando Malcom faz contato, o Corinthians tem superioridade numérica – Malcom, Elias e Vagner Love contra Pará e Wallace – na entrada da área. Entre Elias e Love, Wallace precisa escolher um, Elias. Malcom aciona Love, gol.
Nada é sem querer, nada é por acaso, nada é por sorte. Como dizem os técnicos reconhecidos pelo funcionamento coletivo de suas equipes, jogada que termina bem precisa começar bem. O gol do Corinthians começou com Renadson. Não poderia ser diferente.
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