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Carta aos Corinthians 02: Um pelo outro
Victor Farinelli

Victor Farinelli é um jornalista brasileiro e corinthiano residente no Chile, colabora como correspondente de meios brasileiros como Opera Mundi, Carta Capital, Revista Fórum e Carta Maior.

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Carta aos Corinthians 02: Um pelo outro

Coluna do Victor Farinelli

Opinião de Victor Farinelli

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Carta aos Corinthians 02: Um pelo outro

O Vágner iria ver sua primeira final. O Émerson já era mais “experiente”

Foto: Arquivo Pessoal / Fabiana Andrade

Em dia de véspera de final, eu gosto de sonhar que estou no vagão do trem em Itaquera acompanhando o ritmo dos gritos do povão. Passo o dia pensando nisso, durmo pensando nisso, e quando vou pro jogo tenho a sensação de estar realizando o sonho, e acompanhando o grito da Fiel como se fosse um musical de Hollywood, só que em vez de sapateado e música gringa, é só uns tambores e milhares de pessoas gritando “vâââââmooooo, vâmo Corinthians, que este jogo nós temos que ganhaaaaaaar”.

Meu nome é Juliana e a última vez que sonhei assim foi em 21 de abril de 2019. Segui o ritual como faço sempre. Café quase em silêncio pensando no jogo, e na vida, tentando ver algo no celular pra não pensar, mas sem ver nada realmente importante. Tentando ignorar o cheiro de asfalto molhado pelos anteriores dias de chuva, assando sob um sol escaldante de um outono que nem parecia.

Eu e as crianças saímos por volta das 11h. Elas sempre mais tensas que eu. O Vágner iria ver sua primeira final. O Émerson já era mais “experiente”. Estação lotada, trem lotado. Quando vou com eles, pra qualquer lugar, tudo fica mais difícil.

O Corinthians é a maior e melhor paixão da minha vida. Pra começar, porque ele não me abandona quando eu engravido. Por isso que eu nunca vou abandoná-lo. Mas não vou negar que tenho usado essa paixão um pouco como válvula de escape. É a melhor forma, por exemplo, de fugir dos sentimentos deixados por uma semana de merda, como foi a anterior àquela partida.

Poucos dias antes, eu e vários colegas perdemos o emprego, porque algumas autoridades decidiram acabar com o programa social no qual trabalhávamos. “Porque o serviço público tem que ser mais austero e eficiente”, segundo o garoto branco de barba hipster que se apresentou como novo diretor do departamento e anunciou a justificativa da nova administração, da forma mais seca e arrogante possível. Quando tentei contestar, dizendo que enxugassem os nomeados e privilegiados que não rendem nenhum benefício pra população, e não os responsáveis por serviços públicos que realmente ajudavam as pessoas, fui chamada de “ideológica” e “ressentida”.

"É engraçado, eu tenho 34 anos e infelizmente não tive o estudo que o senhor tem aos 20 (assumo que foi um exagero provocativo, sabia que ele tinha ao menos uns 25), porque precisei cuidar dos meus dois filhos. Mas se defender que o trabalhador possa assistência e vida digna é ser ideológica, seja essa ideologia de direita ou de esquerda, não me importa, eu estou desse lado sim!". Creio que respondi algo assim, tentando esconder a raiva entre os dentes, enquanto aquele banana fazia gestos aos seguranças pra me expulsarem do edifício, sem importava se seria com violência, como foi.

Passei oito anos trabalhando num departamento que entregava ajuda social a regiões pobres da Grande São Paulo. Cobríamos uma enorme parte da Zona Leste, incluindo Itaquera, nos arredores do estádio do Corinthians, e nossa missão era levar roupas e encontrar abrigo pra pessoas que não tinham nada. Tenho o orgulho de ter salvado muitas vidas, a maioria delas mães solteiras como eu. Mas tudo terminou assim, com uma puxada truculentamente pelo braço, que me jogou pra fora da secretaria.

"Mãe, tô cansado, me pega no colo?", o lamento de Vágner resgatou minha mente, presa numa memória dolorosa, e a trouxe pra ansiedade de uma final de campeonato, na qual queria desafogar todo o sofrimento, mas tentando não chorar diante das crianças. Ao menos podia dizer que era outra coisa. Só o Corinthians podia tirar da minha cabeça aquela semana de merda, e trazer outro tipo de sentimentos ao meu coração.

Coloquei o menino nos braços, sabendo que seu problema nem era cansaço de verdade. Era mais medo de se perder no meio da massa.

"Você sempre faz o que ele pede", reclamou Émerson, com cara emburrada, e eu logo retruquei:

"Nem começa, por favor! Você já tem sete anos, e sabe que eu carreguei você no braço sempre que pude. Mas agora não posso mais, quase não consigo levar seu irmão, que está cada dia maior", tentei explicar, novamente segurando pra não chorar.

Aquela pirracinha do mais velho me fez pensar no que seria o mês seguinte, o tempo passando, se eu não conseguir emprego, as contas sem pagar e se acumulando, a gente tentando manter uma vida quase sem luxos, mas uma renda. Eu sou a única pessoa em casa que trabalha, e nós moramos em Suzano, caramba! Nem isso vou poder bancar mais? Aquele talvez fosse o último jogo que poderíamos ver no estádio.

E lá estávamos nós, dentro da Arena, sentados no concreto do Setor Norte, que ainda não tinha nome de remédio, o Émerson entre os meus joelhos e o Vágner tentando escalar meus ombros. Tento preparar a cabeça pra esquecer dos problemas e concentrar no jogo. Aquele time do Carille vinha jogando horrível. Não sei como passamos das semifinais. Peraí, sei sim, porque fui no jogo de ida, quando passamos por cima das sardinhas e depois aguentamos o sufoco na volta. Se não fosse São Cássio era só história triste. Mas o importante é que chegamos na final, alguns titulares voltaram, a torcida estava empurrando e o adversário era o maior freguês da história. Não poderíamos perder a taça!

Tinha que valer a pena toda a grana dessa caríssima entrada. Uma vizinha cretina tentou insinuar que eu era irresponsável e estava jogando fora o dinheiro da comida das minhas crianças. Nem sabe que eu comprei as entradas antes de ser demitida, e além do mais, eu merecia aquele último luxo com os meus filhos, ver o Corinthians tricampeão!

A partida começa! Vágner continua tentando me escalar, o que é bem mais difícil comigo de pé, mesmo eu sendo baixinha. O Corinthians atacava pouco. A gente gritava forte, mesmo quando o time não dava muitas esperanças em campo: “Vai Corinthians!! Vai, não para de lutar!!”.

Até que, em algum momento, o Émerson correu e desapareceu no meio da torcida. Comecei a gritar o nome dele desesperada. Podia ser só uma travessura, às vezes ele gosta de se esconder, mas a angústia de não vê-lo voltando apertou o coração durante alguns segundos. Agarrei o Vágner pelo braço e descemos dois degraus e lá achamos o outro sapeca. Minha vontade era puxá-lo pela orelha.

"Mãe, eu vi o Cássio bem de pertinho agora!", diz ele, e foi o suficiente pra eu pegar mais leve na bronca, apenas dizer que nunca mais fizesse isso de sair de perto de mim. Como se ele fosse obedecer.

Escanteio pra gente. Uma cabeçada, duas, gol do Avelar! GOOOOOOOOL!!! Sabia que ele iria fazer um gol! Vamos ser tricampeões! Ao menos alguma coisa pra salvar esta semana.

Uma das vantagens de ir ao estádio com as crianças é que elas servem pra manter os babacas distanciados. Sabe aquele sujeito que quando vê uma mulher sozinha no estádio já chega querendo abraçar ou agarrar a sua bunda com a clássica “vamos comemorar o gol, princesa” ou qualquer coisa nesse estilo? Tem muito, mas quando vê mulher com crianças é mais difícil de chegar perto, alguns por respeito, mas no caso do babacão clássico, certeza que o problema dele com mulheres que têm filhos é outro.

Outra das pérolas desta semana lixo, dois dias depois da demissão, foi o Lucas terminando um namoro que só tinha sete semanas. Nos conhecemos no Carnaval, começamos a namorar, tivemos um mês maravilhoso, enquanto minha mãe me ajudava a esconder os meninos do novo crush.

Como das outras vezes, achei que ele seria diferente. Apresentei os guris pra ele no começo de abril. E como das outras vezes, daí pra frente, tudo mudou. O tempo de distanciamento, a coisa de gastar todas as desculpas esfarrapadas, até ter coragem de me dizer que não queria mais compromisso - mas sem coragem de admitir que era por causa das crianças. Tudo isso aconteceu em três semanas. Um recorde!

A raiva que deu ao lembrar disso me tirou um pouco o foco do jogo, e quando percebo, o freguês havia empatado, já nos acréscimos do primeiro tempo.

"Tomá no...", Émerson completou seu palavrão e me olhou marrento, com cara de quem esperava a reprimenda, mas não se importava.

"Tudo bem, no estádio pode", respondi.

Passamos o intervalo os três abraçadinhos. Vágner ainda está na idade que adora todo tipo de carinho. Émerson já passou pra fase do menino que quer se soltar mais, ter seu espaço, apesar de reclamar do irmão ter um pouquinho mais de xodó, misto de ciúme e pirraça mesmo. Eu curti os dois títulos mais maravilhosos do Corinthians estando grávida, por isso dei a eles os nomes dos jogadores que fizeram os gols decisivos desses campeonatos.

Veio o segundo tempo, e com ele mais tensão. O Corinthians chegava, mas não chutava. Quando chutava, era horrível. Eu já estava perdendo as esperanças, entrou o Love pra resgatar o meu otimismo. Não podíamos perder! Mas o Clayson chutava e nada, Ramiro tentava bicicleta e nada, Boselli esticava o braço pra pedir uma bola que nunca chegava, nenhum cruzamento na cabeça dele. Assim era difícil.

O nervosismo me fez não perceber que aquela sensação de ser escalada já não estava mais. Cadê o Vágner?

Olhei prum lado, pro outro, bateu novamente o desespero. Já estava acostumada com o Émerson, mas o pequeno nunca desgrudava de mim. Fiquei desesperada. Esqueci do jogo e comecei a gritar. O coração na boca. Perguntei pro Émerson se sabia onde estava o irmão dele. Nem sei se escutei a resposta. Não sei se foram segundos ou minutos que se passaram, na minha lembrança, eu perdi quase o segundo tempo inteiro nessa aflição, até escutar uma voz fininha, bem do meu ladinho:

"Fica tranquilo que uma hora o nosso gol vai sair".

Era um garotinho. Devia ter a idade do Émerson, talvez um pouco mais. Ele segurava o meu caçula ajudando-o a se sentar naquela barra de ferro que virou meio que uma cadeira pra ele.

"Eu falei que ele estava ali", reclamou o Émerson.

O novo amigo do meu caçula era mesmo um amigão: ensinava os gritos da torcida, explicava pra ele as jogadas, praticamente narrava a partida. O Vágner olhava pra ele com uma admiração linda de se ver. O máximo que consegui foi tocar no seu ombro, gesto que ele devolveu com carinho, e respondeu:

"Descansa aí, tia. Eu cuido dele pra senhora".

Não lembro direito o que aconteceu. A ternura daquele momento me fez esquecer ainda mais do jogo. A gente que é mãe às vezes precisa tanto de uma ajuda, que quando ela chegou eu perdi completamente a noção de onde estava, e do que acontecia. O Émerson se juntou a eles, e passaram a brincar com os nomes:

"Você sabia que o seu xará já fez um gol de um título nosso?", e o Vágner sorria fazendo sim com a cabeça, como que querendo contar. "Só por causa disso, aposto que ele vai fazer de novo hoje, em sua homenagem".

Eu tentava ver o que acontecia no campo, mas também queria ver a alegria deles três juntos. Pela beleza da cena mesmo. Porque eles também estavam se divertindo como nunca no estádio.

Me desconcentrei tanto que acabei perdendo o momento decisivo da partida. Não demorou muito e todo mundo começar a pular e gritar. Era gol! GOL!! GOOOOOOOOLLLLLLLL!!! Eu nem tinha visto nada, mas o garoto gritava contando pro meu filho:

"Eu não disse!! Gol do Vágner!! Você é o nosso menino da sorte!!".

Se abraçaram tão gostoso! E depois ele desceu da barra e veio me abraçar. O Émerson também, aproveitou que meus ombros estavam livres e foi a vez dele me escalar. Vágner esticou o braço e chamou o menino pra se juntar ao nosso abraço. Eu o apertei como se fosse tão meu filho quanto os outros. Nunca tinha chorado tanto por um gol do Corinthians, e foi um gol que eu nem vi acontecer, mas era o nosso gol, o gol que, na minha imaginação, só podia ter sido o mais bonito da história.

Faltava pouco pra acabar o jogo, e acho que passei todos os minutos dos acréscimos sentada no chão, com os meus guris gritando “tricampeão” e a torcida enlouquecida ao nosso redor. A beleza daqueles últimos minutos me redimiu de toda a frustração de uma das piores semanas da minha vida. A partida, o título, tudo isso também era importante, e também não era. O mais importante era sentir que, até mesmo quando a gente é campeão, tem coisas que podem ser ainda maiores. Aquele foi o primeiro tricampeonato da minha vida, e até mesmo isso já não era tão importante.

Quando me levantei, enquanto já rolava a cerimônia de premiação, tentei achar o garotinho. Queria agradecer, e também saber se estava com os pais por perto. Se não, era meu dever ajudar a encontrá-los. Olhei ao redor e não vi nem sombra. Perguntei pro Vágner se tinha visto pra onde foi, e nada. Juro que vasculhei quase todo o setor onde estávamos. Sequer sabia o nome dele. Acabou sendo só um garoto, desses que faz toda a diferença. Um anjinho negro que tornou aquele dia mais bonito, pra mim, pros meus meninos, pra todos nós! Corinthians é assim. É um pelo outro!

Na segunda-feira, se iniciaria outra semana duríssima, em um país cada vez mais difícil pra quem é pobre. Mas eu já estava mais forte, e pronta pra lutar de novo.

Veja mais em: Tricampeonato Paulista.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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