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Carta aos Corinthians 03: O filho santista
Victor Farinelli

Victor Farinelli é um jornalista brasileiro e corinthiano residente no Chile, colabora como correspondente de meios brasileiros como Opera Mundi, Carta Capital, Revista Fórum e Carta Maior.

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Carta aos Corinthians 03: O filho santista

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Opinião de Victor Farinelli

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Carta aos Corinthians 03: O filho santista

Um duelo entre Corinthians e Santos, 10 anos depois, com sabor de revanche pra alguns, e de reconciliação pra outros

Foto: Daniel Augusto Jr. / Agência Corinthians

Meu nome é Mário, Mário Santos, e torço pro Santos. Quando era criança, eu aprendi a odiar o Corinthians. Também aprendi a não chorar, nunca demonstrar fraqueza, especialmente diante das mulheres. Quando me vi diante da morte da Leonora, a minha mãe de verdade, não consegui fazer nenhuma dessas duas coisas.

Fiquei do lado dela até o seu último suspiro, numa noite fria de 2012, anunciando um inverno que estava prestes a começar. Quando entrei em seu quarto aquele dia, deixei a luz do teto apagada. Tinha medo de ver a cena, ela daquele jeito, tão fraca e debilitada. Ficou só o abajurzinho ao lado da cama e a televisão nos iluminando. Sentei numa cadeira ao seu lado, e senti a mão dela agarrando a minha.

– Marinho, vem ver o jogo comigo? O Santos vai jogar contra o Corinthians, vocês vão ganhar. Vem ver comigo.

Foi a primeira vez que tive vontade de chorar, mas dessa vez eu segurei.

– Não, hoje é a vez de vocês ganharem, você vai ver.

– Não seja bobo. Vocês sempre ganham. Vai ter gol daquele menino, como ele se chama?

– Neymar.

– Esse. Vai fazer dois gols.

A Leonora lutou durante quase uma década contra um câncer de mama que avançou aos poucos, e do qual pouca gente sabia. Eu mesmo não sabia, e senti raiva quando ela me contou. A mesma raiva que senti quando a conheci.

Durante muitos anos, eu não fui filho dela. Meus país eram um casal de classe média de Santos. Augusto, um militar que me impôs a educação rígida com a qual me formei, e Jacira, que me ensinou a odiar a Leonora quando ela apareceu um dia em casa dizendo que era a minha verdadeira mãe.

Era 1992, quando eu tinha 15 anos, aquela mulher mudou completamente a minha vida com uma notícia que chegou assim, do nada. Nos primeiros anos da disputa judicial, a Jacira fez de tudo pra evitar que a Leonora e o advogado dela se aproximassem de mim, e foi tudo o que eu soube dela nesses primeiros anos: que era uma louca querendo exame de paternidade, que iria me sequestrar e me levar pra Cuba.

Com o tempo, meu ódio inicial por ela foi cedendo a certas evidências, como o fato de que eu era claramente mais parecido com ela do que com o Augusto e a Jacira – a começar pela cor da pele, já que, mesmo eu não sendo negro, tampouco sou tão branquelo quanto os da minha antiga família.

Quando completei 18 anos, tive que ir a um tribunal, onde descobri outra versão: a Leonora foi uma guerrilheira que lutou contra a ditadura e que foi presa quando estava grávida. Meu verdadeiro pai se chamava Rubens. Eles viviam na capital, mas tentaram se esconder em uma casa no meio do mato, em uma cidade próxima de Campinas, onde foram pegos. Minha mãe aguentou meses de tortura comigo na barriga, até que eu nasci e fui registrado como filho do coronel responsável por aquele centro de detenção, cuja esposa não conseguia ter filhos. A Leonora conseguiu fugir da prisão dias depois do parto. O Rubens nunca mais foi visto.

A defesa de Augusto e Jacira passou anos evitando o pedido dos advogados da Leonora por um exame, mas quando eu fiz 18 anos, o juiz determinou que essa escolha cabia a mim e não a eles. Eu disse que sim, e o exame confirmou a verdade.

O distanciamento dos meus pais adotivos e a aproximação da Leonora foram processos difíceis, ainda mais por terem acontecido ao mesmo tempo. Eu continuei morando com o Augusto e a Jacira durante alguns anos, e minha mãe me visitava sempre que eu a deixava.

Nos primeiros anos, eu não deixei muito. Não sabia direito quem deixar de odiar, e como poderia amar alguém naquelas circunstâncias. Ela sempre dizia que era feliz só por poder falar comigo, e que esperaria o momento que eu quisesse aceitá-la, mas aquilo também me dava certa raiva – talvez por achar que era virtuosismo demais.

Em 2000, passei a morar sozinho, e um dia resolvi visitá-la. Eu já tinha meu emprego, ganhava meu dinheiro, me sentia mais independente e, talvez por isso, achei que deveria ter uma postura mais adulta com ela.

Porém, toda aquela maturidade se esfumou quando ela me recebeu vestindo uma camiseta do Corinthians. Foram anos de trabalho pra me desfazer de vários preconceitos ideológicos que o Augusto me ensinou, mas ao menos duas coisas que aprendi com ele eram impossíveis de mudar: o amor pelo Peixão e um ranço profundo por aquele timinho do Parque São Jorge.

Tentei disfarçar, mas a Leonora percebeu meu incômodo:

– Achei que você estava mais aberto a falar comigo, mas nem está me olhando – mantive o silêncio por alguns segundos – É algo na minha cara? Eu tenho alguma verruga?

– Uhmm… É essa camisa.

– Corinthians? Ah, você torce pra outro time, tinha esquecido. Desculpa, meu filho. Mas eu não imaginava que isso significasse tanta raiva assim do Corinthians.

– Você é corinthiana, também não odeia os rivais?

– Não, porque eu não sou uma torcedora comum. O Corinthians é mais como uma terapia pra mim.

Então, ela começou a contar um pouco da sua história: nasceu em São Bernardo, numa época em que as mulheres eram proibidas de jogar futebol. Na juventude, quando era estudante, decidiu questionar coisas muito mais profundas que essa, e passou a militar em organizações que combatiam a ditadura. Após fugir da prisão, Leonora se manteve escondida e meio isolada de tudo, mesmo depois da anistia, quando deixou de ser procurada pelos órgãos de repressão. O trauma das torturas a faziam entrar em pânico sempre que se via em um lugar com muitas pessoas.

Quando ela decidiu lutar contra esse pânico, um amigo sugeriu a ela ir num jogo de futebol. Ela protestou dizendo que considerava o esporte alienador e contrarrevolucionário, mas o amigo disse que havia um movimento novo que talvez a fizesse mudar aquela ideia. Era a Democracia Corinthiana, um sistema criado pelos jogadores que estabeleceu um regime democrático dentro de um time de futebol, em plena ditadura militar. Ela adorou a ideia, e inclusive achou inusitados os nomes dos líderes do movimento: Sócrates e Wladimir.

Acabou indo em uma partida. Sentiu o coração meio disparado durante vários minutos, até que após o primeiro gol, aquela euforia, os gritos, os pulos, as pessoas se abraçando, fizeram ela se sentir mal por alguns segundos, até que o seu amigo disse:

– Grita, extravasa! Solta isso que está guardado que vai te fazer bem.

E ela gritou, com todas as suas forças. Como quem quer gritar tantas coisas que ficaram entaladas durante tantos e tantos anos. Aquilo foi como uma libertação. Dali em diante, passou a ir em alguns jogos, e também em alguns comícios das Diretas Já, onde os democratas corinthianos também estavam no palco. Mas ela não era uma corinthiana comum, não era chata como a maioria dos corinthianos que menosprezam o Peixão.

– Por que não vamos num jogo juntos? – ela propôs, e viu minha cara de contrariedade – Não seja machista, Marinho! Aquele velho pode ter dito pra você que futebol não é coisa de mulher, mas você já é adulto o suficiente pra saber que não é assim.

– Não é isso – mentira, era sim. Eu realmente pensei que ir ao estádio com uma mulher, mesmo que fosse a minha mãe, seria algo estranho, mas demorei dois segundos pra perceber que era um pensamento ridículo e tentei consertar com outra coisa – É que a gente iria num jogo do Santos ou do Corinthians?

– Eu vou contigo no jogo do Santos. Já te falei que não tenho nada contra o Santos.

Acabei rejeitando a proposta, mas ela passou a insistir todas as vezes em que a gente se encontrava. Chegou a comprar uma camiseta do Santos pra garantir que iria torcer junto comigo, e não contra.

Em 2002, eu finalmente cedi, mas com certa maldade. Era final do Campeonato Brasileiro, e aquele timaço de Diego e Robinho tinha vencido o jogo de ida por 2x0. No jogo de volta, com a certeza de que aquele time não perderia jamais, eu queria ter algum corinthiano por perto pra ir à forra por todas as provocações da infância e da adolescência.

Mas minha mãe me surpreendeu. Ela percebeu rápido que aquele título era importante pra mim, ver o Santos ser campeão depois de tantos anos, e pela primeira vez desde que tinha memória.

Já no primeiro gol do Peixão, ela gritou mais forte que eu, e riu ao me ver vibrar com as pedaladas humilhantes do Robinho pra cima do Rogério. Foi muito legal, e ao mesmo tempo estranho. Depois, no segundo tempo, o Corinthians virou o jogo e me deu um frio na espinha. Achei que tomaríamos um gol nos acréscimos, igual ao do Ricardinho na semifinal do Paulistão do ano anterior. Sentei na arquibancada meio em pânico, mas ela agarrou a minha mão e me ajudou a não desanimar. No fundo, eu queria gritar uns xingamentos contra o Corinthians que não se dizem pra uma mãe, mas a reação dela me desarmou.

– Você deveria ficar feliz torcendo pelo seu time.

– O que me faz feliz é ter você feliz ao meu lado.

Nós nos abraçamos. Quando nos soltamos, ela estava chorando. Era nosso primeiro abraço assim, entre mãe e filho, de verdade. Acabou sendo tão ou mais delicioso que aquele título.

Minha mãe nunca deixou de ser corinthiana, do jeito dela de ser corinthiana, mas passou a ir nos jogos do Santos também. Ela me ensinou a perder um pouco do ranço pelo Corinthians, tanto que me casei com uma corinthiana, a Bia.

Também li mais sobre os tempos da ditadura e descobri que casos como o meu, de bebês de presas políticas que tiveram suas identidades trocadas e foram adotados clandestinamente, eram comuns nas ditaduras da América do Sul. Assim, passei a entender mais a Leonora, mas também perdoei a Jacira, a quem ainda visito esporadicamente – o Augusto não, só soube que morreu em 2010, quando já não tinha nenhum sentimento por ele, nem bom nem ruim.

Eu, a Bia e a Leonora passamos a ir os três juntos ao estádio, nos jogos de ambos os alvinegros. Eu era o menos adulto do trio, já que elas pelo menos apoiavam o Santos. Eu me recusava a fazer o mesmo pelo time delas, me limitava a não torcer contra – ou fazer um esforço nesse sentido.

Só mudei naquela noite de 2012. Ela já estava desenganada pelos médicos e resolveu passar seus últimos dias em casa. Quando ela pegou na minha mão e quase me fez chorar, eu já tinha prometido pra mim mesmo que era o dia da exceção. Sim, eu torci pro Corinthians. Torci com todas as minhas forças. Não sei se só queria fazer a minha mãe feliz, ou se queria mostrar que ela me ensinou a ser uma pessoa melhor.

Foi horrível, porque nós abrimos o placar, e eu tive que lutar comigo mesmo pra não comemorar, na primeira e única vez na minha vida que fiquei contra um gol do Santos.

E a Leonora, com aquela generosidade canalha que a acompanhou até o seu último minuto, ainda tentou gritar com o pouco que tinha. Creio que também queria me abraçar, como naquela tarde em 2002, mas só conseguiu apertar um pouquinho mais a minha mão e me olhar com aqueles olhos de mãe.

– Eu falei, Marinho. Eu falei que esse menino ia fazer o gol. Você tá feliz, não tá, meu filho?

Respondi que sim. Era a resposta que ela queria ouvir. Talvez a remetesse àquele abraço, que acho que ela nunca esqueceu.

Conversamos algumas coisas. Ela voltou a pedir que eu não tivesse mais raiva dela, que foi a raiva que eu tive quando ela me contou tardiamente sobre o câncer. Eu lembrei que aquela raiva só durou alguns dias, que eu já tinha esquecido. Dei um beijo na sua testa. Ganhei um cafuné. Foi um momento de certa hipnose mútua que não sei quanto tempo durou. Só sei que, quando voltamos dele, já era segundo tempo e o Corinthians acabava de empatar.

– Olha lá, gol do Coringão. Gol do Coringão!! É pra você, mãe!!

– Não importa o Corinthians, meu filho. O que importa é que você estar aqui.

– Não, mãe! Se eu já tô aqui com você há mais de dez anos – aí eu já não aguentei e comecei a chorar mesmo – Caramba!! A gente tá junto, desde que…

– Desde que você me aceitou como sua mãe. Foi a melhor coisa que me aconteceu. Quem vai ganhar este jogo não é importante.

– Pra mim é importante. Deixa eu querer algo pra você alguma vez. Quero ter você feliz ao meu lado.

– Eu sempre fui… Eu sempre sou feliz ao seu lado.

Foram alguns segundos. Olhares. Lágrimas. E eu comecei a falar como uma criança.

– Eu quero que você… Eu não quero ficar sem você.

Ela me puxou pra mais perto dela. Juntamos testa com testa. Lágrima com lágrima. Amor com amor.

Nem vimos o resto do jogo. Transformamos aqueles 15 minutos finais nos 15 anos daquela infância entre mãe e filho que nós não tivemos. Voltamos a falar de futebol só depois, quando o time dela já estava classificado pra final.

– Eu quero que você viva pelo menos pra ver o Coringão campeão. Pra você comemorar o título da Libertadores.

– Ah, meu filho – e acariciou meu rosto – Eu ganhei o seu amor. Nenhum título de futebol vai ser mais importante que isso – definitivamente, ela queria que eu nunca parasse de chorar.

O funeral foi dois dias depois. A Bia foi com parte da família dela, senão seríamos só nós dois – toda a família da Leonora se afastou depois que ela foi presa pela ditadura, ela só tinha a mim.

A última frase dela antes de morrer fez com que o título de 2002 se transformasse em meu pensamento permanente, mas não mais com a felicidade que aquela lembrança sempre me trazia, e sim com um certo remorso, de não ter sido tão generoso com ela quanto ela foi comigo.

Na saída do cemitério, uma discussão entre parentes da Bia me deu uma oportunidade. O irmão dela era palmeirense, e tinha um filho, o Felipe, um corinthiano contrariado, já que o pai se recusava a levá-lo ao estádio pra final. Pedi pra Bia propor que nós levássemos o garoto no jogo de volta. Eles aceitaram.

Tudo naquele jogo me lembrou o dia da final de 2002, incluindo a excitação do Felipe em ver o time dele levantando uma taça e superando anos de provocação – eu sabia muito bem o que era aquilo.

A partida foi tensa, com um primeiro tempo que me fez entender porque os corinthianos dizem que gostam de sofrer. No intervalo, com o empate no placar, meu sobrinho teve um momento de pânico e começou a dizer que temia pelo pior, então eu resolvi intervir.

– Que é isso, cara! Você é corinthiano, e corinthiano não desiste assim sem lutar. Contra tudo e contra todos, não é assim que se fala? Então, força que no segundo tempo a gente vai ganhar esse jogo!

O garoto saiu gritando, batendo no peito e cantando o hino. A Bia disparou seu melhor olhar de admiração, mas eu tentei disfarçar.

O segundo tempo começou como aquele da semifinal, e logo no comecinho o Felipe teria sua recompensa, com passe de calcanhar de Danilo e gol do Émerson Sheik. Gritamos juntos, nos abraçamos.

Vinte minutos depois, outro gol do Corinthians, mais gritos e abraços, e eu comecei a chorar de novo, pensando na minha mãe e como ela estaria feliz de me visse ali naquele momento. O único não corinthiano dos três era quem estava chorando por aquele título. Meu sobrinho me olhou com uma cara de surpreso. Talvez era a mesma que eu tinha quando não soube como reagir à minha mãe em 2002.

– Poxa tio, você é um cara legal mesmo, por me trazer aqui e torcer comigo, mesmo tendo que ver o título de um rival.

Não consegui responder. Quando enxuguei os olhos, vi a Bia me olhando com ternura e falando por mim:

– Ele aprendeu a ser assim, Felipe. Com alguém muito especial.

Veja mais em: Libertadores da América.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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