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Maloqueiros
Rafael Castilho

Rafael Castilho é sociólogo, especializado em Política e Relações Internacionais e coordenador do NECO - Núcleo de Estudos do Corinthians. Ele está no Twitter como @Rafael_Castilho.

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Maloqueiros

Corinthiano, maloqueiro e sofredor. Graças a Deus!

Foto: Reprodução

O comentário da apresentadora de tevê, recheado de preconceito social e ressentimento, não traz nenhuma novidade em nossa história. Ao contrário, é algo elementar. É, ao mesmo tempo causa, circunstância, condição e substância na existência do Sport Club Corinthians Paulista, fundado por trabalhadores operários na madrugada 1º de setembro de 1910, provavelmente o único horário livre depois de um longo dia de trabalho, sob à luz de um lampião, no bairro popular do Bom Retiro.

Cento e doze anos após o surgimento do Corinthians, o comentário preconceituoso, ainda que protegido e envernizado pelo “humor” é absolutamente revelador, se não trágico.

Mas, tudo bem. Deixemos, pelo menos de nossa parte, o ódio, a amargura e o ressentimento de lado. Paremos um instante para pensar. Quantas vezes nossas tragédias na vida não se tornam, por outro lado, a nossa maior fortaleza? Quantas vezes a casca dura que ganhamos por situações adversas não vão se converter em nossas maiores potencialidades, nos ajudando na vida, no trabalho, nas relações humanas?

O Corinthians joga o jogo como a gente vive a vida. O Corinthians vive o jogo como a gente joga a vida. O Corinthians joga a vida como a gente vive o jogo. O jogo é o jogo e o Corinthians é a nossa vida.

Têm coisas que acontecem na vida e acontecem no jogo. Têm coisas que acontecem no jogo e são absolutamente equivalentes na vida da gente.

Peço licença para compartilhar com vocês um acontecimento histórico, devidamente documentado na ata da reunião de diretoria do Sport Club Corinthians Paulista no dia 1º de setembro de 1915, na sede que o Corinthians havia adquirido na Praça da Sé.

Respirem fundo por alguns instantes e tentem visualizar a cena que vou descrever para vocês.

Aniversário de cinco anos de fundação do Corinthians. A noite que deveria ser de festa era de absoluta preocupação. Sócios e diretores se reúnem para discutir o futuro do clube. Um clima de tensão pairava no ar. O ano de 1915 foi absolutamente trágico para o Corinthians. Nosso clube estava em vias de ser encerrado. Tudo poderia ter acabado ali, naquela reunião, naquele momento.

O Corinthians havia sido excluído pelos grandes e tradicionais clubes da liga paulista. Havíamos vencido nosso primeiro campeonato. O Corinthians se sagrou Campeão Paulista de 1914 e, em ato contínuo, os clubes da oligarquia paulista, inconformados, se reuniram em outra liga, deixando o Corinthians de fora. Não nos queriam.

O futebol é uma festa para qual o Corinthians nunca fui convidado. Quando digo o Corinthians, não separo torcida, instituição, diretores e jogadores. O Corinthians, sem exagero e exaltações, nasce de um esforço coletivo.

A desculpa para exclusão do Corinthians (ou formação de uma nova liga “sem nois”) era que desejavam uma liga absolutamente amadora. E o que significava o amadorismo, na prática, àquela altura?

Quando falamos hoje em amadorismo versus profissionalismo, automaticamente conferimos certa simpatia aos amadores. Mas naquele momento histórico, significava justamente o contrário.

O amador que praticava o futebol, ou seja, não profissional, o fazia pelo amor ao desporto, por saúde, por recreação. E quem tinha tempo livre, espaços e condição para praticar o esporte – e se dedicar física e tecnicamente para ter o melhor resultado possível – naquele início de século XX? Sim, os afortunados.

Quando um jogador operário praticava o futebol, dizia-se, alguém está pagando a conta. Existem outros clubes no mundo de origem operária. Quem tiver Netflix, vale à pena assistir à série “The English Game”, que conta a história de um clube inglês, na segunda metade do século XIX que contava com jogadores e torcedores operários e se intrometem, incomodam e são, de certa forma, excluídos pela tradicional Association Football, justamente com o argumento de que trazia consigo jogadores profissionalizados. Na verdade, esses operários trabalhavam em jornada dupla, na indústria e no desporto. Foram absolutamente pioneiros.

Existem outros clubes operários no mundo, mas nenhum igual ao Corinthians. O maior ativo do Corinthians é sua história. Outros clubes de origem operária surgiram com grandes patronos. Algum milionário pagando a conta. O Corinthians é um milagre. Surgiu, cresceu, venceu fundado e desenvolvido por seu próprio povo. Não é exagero. Não é discurso político. Essa é a história.

Por falar em história, voltemos a ela. Fechem os olhos. Ou melhor, abram os olhos, caso contrário, não poderão lê-la.

Aniversário de cinco anos do Corinthians. A noite tensa. Sócios e diretores se amontoam em uma sala na Praça da Sé. Todos com um nó na garganta. O Corinthians, excluído da liga, ficou sem poder jogar. Não haviam mais arrecadações. O Corinthians estava muito endividado.

Para custear as despesas fixas que o clube havia assumido, o Corinthians realizou empréstimos. Como garantia penhorou seu patrimônio. Os móveis estavam todos penhorados e até mesmo os nossos troféus. Sim, eu sei que coincidências históricas podem ser irritantes, mas elas não param por aí.

Depois de uma longa discussão e bate boca sobre a crise financeira e até mesmo a possibilidade de o Corinthians encerrar suas atividades, um associado se levanta e pede a palavra. Sr. Marques questiona por que o Corinthians assumiu uma dívida tão grande para obter uma nova sede. Pergunta ele, por que o Corinthians deixou o bairro modesto do Bom Retiro (palavras do Sr. Marques)? Deixou o bairro modesto e “não tinha precisão” de se instalar no bairro luxuoso e aristocrático da Sé (ainda palavras do Sr. Marques).

O presidente Ricardo Oliveira também se levanta e replica: “Se a diretoria adquiriu a sede na Praça da Sé foi por uma questão social, para o ‘elevamento’ moral do clube, que como todos sabiam, era difamado pelos inimigos que não podendo vencê-lo no campo de luta, orgulhavam-se em difamar o Corinthians”.

Como não amar a história do Corinthians? Isso tudo está documentado em uma ata manuscrita. Sim, feita à mão. Não tem nem como dizer que foi adulterada. O documento compõe o acervo do Núcleo de Estudos do Corinthians.

Dois anos depois deste “quase encerramento” do Corinthians, o clube renasce. Sim, sempre renascendo. Em 1916 voltamos a disputar e vencemos o Campeonato Paulista daquele ano. Em 1917 o Corinthians consegue adquirir o terreno para o estádio da Ponte Grande. Em 1926 o Corinthians adquire o Parque São Jorge.

Mas nenhuma vitória, nem do passado, nem do presente é reconhecida por aqueles que odeiam o Corinthians.

Por conta do Parque São Jorge, somos a Marginal Tietê S/N. Nosso estádio em Itaquera foi “dado de presente”. Nosso primeiro Mundial de Clubes não valeu. E por aí vai...

Sim, no futebol existem estigmas e a ofensa, de certa forma, compõe o que conhecemos do jogo. O Futebol não gera violência, ao contrário, absorve uma violência que existe na sociedade. É uma domesticação de conflitos, sociais, regionais e até mesmo globais. O futebol dá um sentido lúdico para outros tipos de lutas, guerras e disputas.

Nós Corinthianos também erramos. Algumas vezes passamos do ponto.

Mas o ódio que o Corinthians recebe é diferente de todos os outros. Ele se manifesta quando vencemos, mas até mesmo quando perdemos.

Mas, ao contrário de outros times, não nos ressentimos de quem somos.

A senhora apresentadora pode nos chamar de maloqueiros. Assumimos isso para nós.

O Corinthians é um maloqueiro, mesmo quando não é. O Corinthians é também mais um favelado, mesmo entre aqueles que vivem em uma casa confortável. O Corinthiano é um pau de arara, mesmo entre aqueles que nascem em São Paulo. O Corinthiano é um imigrante refugiado, mesmo sendo o clube mais brasileiro. O Corinthians é o clube dos pretos, entre aqueles que são pretos, aqueles que são mestiços e aqueles que são brancos. O Corinthians é o clube das mulheres, entre as torcedoras que são mulheres e o torcedores que são homens, pois o Corinthians consegue ser ao mesmo tempo o clube da maioria e o clube das minorias, daqueles que nunca têm vez. A gente carrega todos esses estigmas tatuados na testa. Quando a gente é corinthiano, leva isso dentro do peito.

O corinthiano não se envergonha de quem é! O corinthiano gosta de ser simples! O Corinthians é a consciência de classe possível nos nossos dias!

E, quer saber? É muito bom ser como somos.

Aprendemos na escola, quando podemos. E aprendemos na vida, quando vencemos! Aprendemos na marra, quando perdemos.

Corinthiano, maloqueiro e sofredor. Graças a Deus!

Aqui é Corinthians!

Veja mais em: História do Corinthians e Torcida do Corinthians.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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    Top, parabéns! Ótimo texto! Assino embaixo!
    Corinthiano maloqueiro e sofredor, graças a Deus!

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    Excelente! Assim é o Corinthiano.

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    Salve o Corinthians!

    O campeão dos campeões!

    Eternamente em nossos corações!

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    Moro em Natal, Rio Grande do Norte. E por pura coincidência da vida, estava em São Paulo no dia 17, no dia do treino aberto. Havia conseguido os ingressos gratuitos para assistir o time de perto e ver pela primeira vez a fiel em peso dentro do nosso estádio. Já conhecia a Arena por aquele tour, mas a experiência nova foi totalmente diferente, falta um jogo agora. Vale lembrar que tive que alterar o voo que tinha para o Rio de Janeiro às 15 horas para ir ao treino. Depois de muito luta, consegui. Deixei malas no aeroporto e parti de metrô para Itaquera. Voltando em cima da hora para o novo voo. Loucura corintiana... O que não fazemos pelo nosso time.

    No Rio, todo o clima do jogo e de já ganhou dos flamenguistas fez eu viver a partida de um modo totalmente novo. Tudo de perto ficou ainda maior, mais intenso. Tentei ver o jogo no estádio mas era caríssimo. Fugia do meu orçamento.

    Fiquei na TV do hotel, sozinho na terra do adversário. Acreditei bastante, vi o silêncio que as ruas ficaram em todo o segundo tempo. Infelizmente por muito pouco não ficamos com a taça. Para os de fora que acreditavam que seria uma surra, uma surpresa. Para nós corintianos mais uma demonstração que nosso time é GIGANTESCO.

    E sim, desde a quarta feira, sem dormir bem, com o espírito machucado, não paro de pensar no meu time. No meu Corinthians, time do povo. É um fato que para nós o sentimento cresce no momento ruim, na dor. Que os outros busquem explicação e tentem cobrar o racional de nós. Não encontrarão, pois aqui tem um bando de loucos. Loucos pelo Corinthians.