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Doutor Sócrates: a lembrança que eu tenho da lembrança
Walter Falceta

Walter Falceta Jr. é paulistano, jornalista, neto de Michelle Antonio Falcetta, pintor e músico do Bom Retiro que aderiu ao Time do Povo em 1910. É membro do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO).

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Doutor Sócrates: a lembrança que eu tenho da lembrança

Eu, o Doutor e Estela: encontro para falar da história corinthiana

Foto: Arquivo Pessoal

A recordação vai sendo construída, todos os dias, pelas adições, alterações e correções que fazemos nos registros da memória original.

Nunca é, portanto, obra pronta. E ninguém morre de verdade, porque continua a se transformar na alma e na mente dos que ficaram.

Como ensinou Goethe, em "Afinidades Eletivas", uma pessoa somente morre de verdade quando é esquecida por aqueles ainda vivos.

Hoje, completam-se dez anos daquela data paradoxal, fatídica e jubilosa. Acordei de madrugada com a intenção de garimpar dois ingressos para a partida decisiva do Campeonato Brasileiro. Meu filho, Lucca, torcia por meu sucesso.

Logo cedo, eu perambulava pela Praça Charles Miller quando minha ex-mulher me ligou para vocalizar a notícia tristíssima. Ela, palmeirense, tinha o coração arrasado.

Chorei sozinho diante do templo onde tantas vezes havia assistido aos espetáculos esportivos do Magrão. Meses antes, ali no Museu do Futebol, estivera com ele no evento que promovemos para celebrar o centenário do Time do Povo. Na memória, ouvi sua voz tratando de justiça, inclusão e solidariedade.

A gente pode, pois, elogiar Sócrates Brasileiro pela magia dos toques de calcanhar, pelas assistências a Ataliba e Casagrande, pelas tabelas com Palhinha, pelos chutes secos, medidos, que estufavam as redes adversárias.

Podemos sublinhar que era delgado, elegante, praticava o fair play e projetava-se em carrinhos quando necessário.

A exaltação pode se dar também pela alma humanista utópica, por suas contribuições à luta contra a Ditadura Militar, pela colaboração luxuosa ao resgate da alma rebelde e operária de nossos heróis fundadores, aqueles iluminados pelo cometa em 1910.

Sócrates, aos poucos, foi se tornando corinthianista, enquanto revigorava o corinthianismo dentro de todos nós. E esta foi uma de suas maiores façanhas.

Sempre que escrevo sobre o Magrão, no entanto, alcanço a memória do que mais nos falta: a generosidade gentil. Nosso eterno camisa 8 sabia endurecer-se (um pouco), mas sem jamais perder a ternura.

Em todos os encontros com Sócrates, admito que as palavras me escapavam. Entrava eu, por vezes, em um distraído estado contemplativo. Precisava me beliscar para acordar. Ele, entretanto, nunca se portava como um ídolo ou como uma divindade. Era mais um amigo, um igual, um companheiro sorridente e carinhoso.

Recordo de um almoço com ele, o eterno lateral esquerdo Wladimir e Alessandra Pereira na cantina Famiglia Mancini, na Rua Avanhandava, no centrão de São Paulo, na dobra do milênio.

Na época, eu brincava descontraído como o Wlad, nosso colaborador no portal da Todosport. Com o Magrão, no entanto, eu era somente reverência.

Ele começou aquela tertúlia meio calado, angustiado com umas coisas que via erradas no Brasil. Pensei que não teríamos meia horinha de papo.

Logo, no entanto, ele pediu um vinho italiano. Descontraiu-se. E começou a falar, a perguntar, a sugerir, a coletar nossas opiniões para seus incríveis e revolucionários projetos.

De repente, o tempo tinha sido escoado pelo ralo da percepção. Eram dez para as cinco da tarde e ainda continuávamos lá, beliscando o pão italiano, tratando de futebol, política, psicologia, literatura, dissabores e amores.

Sócrates sabia exercitar-se na projeção dialética, no modo hegeliano de constituir o amor pelos outros. Tinha humildade e competência para projetar-se no interlocutor, valorizando suas dores, seus motivos e suas demandas.

Já em seus dias derradeiros, encontrei-o na TV Cultura, e ele me pareceu calmo, pleno de canduras, comigo e com a Estela Suganuma, trocando ideias libertárias com o compa comum Xico Sá.

Naquele dia, ele repetiu o pensamento antigo. A melhor esquerda do Brasil era aquela que copiava o corinthianismo, em sua fidelidade, em sua paixão, em sua solidariedade.

Sim, o Doutor aparentemente era contido, mas adorava o mar de bandeiras, o papel picado, o batuque, a alegria da Fiel. Segundo o Magrão, aquele, sim, era o pulso da vida. Era o que realmente valia a pena no futebol.

Enfim, cada Sócrates que conheci era melhor e mais jovial do que o anterior, mais capaz de rir de si mesmo, mais capaz de rir com os outros, em vez de rir dos outros.

Hoje, completam-se 10 anos da elevação encantada à arquibancada de cima. E continuo ouvindo a voz do atleta educador.

Tenho aqui um livro que foi dele, “O Processo”, de Kafka, e cogito de que Sócrates se identificasse com o processado. Sua alma elevadíssima, desapegada dos tesouros materiais, provavelmente se sentia numa inquisição sem fim, oprimida pela ignorância, pela ganância e pelos pesados grilhões do senso comum.

Nesta madrugada, debaixo de garoa, caminhei pelas ruas do bairro. Foi para relembrar minha juventude, quando eu retornava tarde da noite das jornadas de Morumbi e Pacaembu. Vinha em silencioso êxtase, recordando as proezas do querido Doutor.

Hoje, em dado momento, essa memória foi reconfigurada: ele fez uma visita a este mundo, e caminhava ao meu lado.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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Walter Falceta Jr. é paulistano, jornalista, neto de Michelle Antonio Falcetta, pintor e músico do Bom Retiro que aderiu ao Time do Povo em 1910. É membro do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO).

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