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A vida me ensinou a caminhar
Rafaela De Oliveira

Acadêmica em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e de olho na base do Corinthians.

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A vida me ensinou a caminhar

Coluna da Rafaela De Oliveira

Entrevista de Rafaela De Oliveira

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A vida me ensinou a caminhar

Ronald posa com medalha do décimo título da Copinha, presente de Loss

Foto: Rafaela de Oliveira/Meu Timão

Quando nasceu, no dia 13 de janeiro de 1999, em algum dos hospitais de Pernambuco, Ronald dos Santos Trindade percebeu que a vida não seria fácil. Ainda muito novo, sofreu com uma meningite no cérebro e teve seus próximos dias resumidos a “impossíveis”. Desde então, vem combatendo todos os contratempos como um capitão.

Da infância, o pouco que se lembra em nada tem a ver com bater bola na rua ou assistir a desenhos animados. No primeiro ano de vida, descobriu ser portador da Síndrome de Marfan, doença rara que afeta uma a cada 5 mil pessoas e atinge o sistema cardiovascular, esquelético, ossos e pele. Caso também do jogador norte-americano de basquete Isaiah Austin.

"Costumo dizer que passei a me entender como gente aos 12 anos. Foi quando as coisas começaram a ficar mais pesadas e eu tomei conhecimento da situação. Porque, antes disso, até a transição do tempo em que andava para o tempo que fui para a cadeira, eu não tenho lembrança alguma", conta.

“As melhores histórias que eu tenho são de lutas. São delas que tiro a minha força.”

Muito cedo se deu conta de que precisaria ter algo a que se apoiar para suportar as inúmeras esperas por cirurgias e suas respectivas recuperações - já são cerca de 20 operações. Em 2012, após procedimento que visava colocar sua coluna no lugar, por meio de um aparelho semelhante a uma auréola, tendo, para isso, de fazer quatro furos no crânio, encontrou no futebol o seu refúgio.

Depois de cinco meses internado, descobriu o insucesso da intervenção, que não conseguiu sustentar a espinha e viu os ossos voltarem a entortar - comprimindo os pulmões e causando cansaço repentino. "Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Se eu passei por aquilo, se enfrentei e continuei lutando, foi pelo futebol", conta o garoto, que mora com a mãe e o irmão mais velho, no Parque Novo Mundo, na zona norte de São Paulo.

E a base veio forte para ajudar

Corinthiano e admirador de Osmar Loss, ex-técnico do Sub-20, Ronald achou na equipe de juniores a oportunidade perfeita de ajudar e ser ajudado. Em uma visita à Fazendinha no início de 2017, a convite do professor, o jovem acompanhou treinamento do banco de reservas, conheceu os jogadores alvinegros e, para sua surpresa, foi convidado a palestrar.

"Não sabia o que ia falar, foi tudo no improviso. E eu sou muito tímido. Quando entrei no vestiário, estava muito perdido. Eu contei a minha história como se fosse uma conversa normal. Depois, tirei foto com todo mundo. O time inteiro começou a me seguir nas redes sociais. O que me chamou a atenção, porque, para mim, o fato de lutar é uma coisa que todo mundo deveria fazer. Não é algo que me engradeço", assegura.

Acontece que o relato de Capita surtiu efeito e o Timãozinho viajou a Taubaté focado em alcançar o décimo título da Copa São Paulo de Futebol Júnior. Como não poderia deixar de ser, já com a taça em mãos, o garoto foi homenageado e, inclusive, presenteado com as medalhas de Osmar Loss e Dyego Coelho, hoje à frente do grupo.

Ronald, ao lado dos jogadores campeões da Copinha de 2017

'Faz o C de Capita': Ronald, ao lado dos jogadores campeões da Copinha de 2017

Rodrigo Gazzanel/Ag. Corinthians

Ao Meu Timão, Osmar Loss, atual auxiliar de Carille, acrescentou: "Conversei com ele, conheci um pouco mais a fundo a sua história. Com ele contando as dificuldades que passava, visto que estávamos começando um campeonato difícil e que a temporada passada não tinha sido tão brilhante quanto as anteriores, foi um meio de tentar demonstrar um pouco da realidade da vida aos atletas. Felizmente a relação dele com os jogadores, comigo e com tudo teve um final feliz, que foi o título da Copa São Paulo."

Sobre a sua ligação com os corinthianos, a quem encontra às terça-feira para reuniões religiosas, Ronald aponta conhecer um lado incomum: "O cara na televisão é aquele atleta, profissional, que é cobrado no dia a dia. Mas, fora do campo, é totalmente diferente. São seres humanos, e pelo fato de palestrar e ter uma história que acaba ajudando-os, vejo um outro lado do jogador."

Mas nem todos os dias são de vitórias; ainda falta, e muito, acessibilidade e inclusão

Preocupado em não esquecer nenhum detalhe, o rapaz relembra ocasiões em que ser cadeirante pareceu ter mais importância do que realmente tem. Durante um confronto entre Independente de Limeira e Paulista de Jundiaí, pela Série A2 do Paulista, teve de lidar com a insensibilidade de um fiscal da Federação Paulista de Futebol (FPF).

"Tinha combinado com o Alemão, que hoje está no Paraná, de entrar em campo com ele. Estava certo com o clube também. Faltando 15 minutos para começar o jogo, um fiscal da FPF não autorizou, alegando que eu tinha de ter liberação do policiamento. O assessor do clube argumentou que eu podia entrar, que as crianças costumavam entrar com os jogadores, e o fiscal disse: 'Crianças são diferentes de cadeirantes'. E não me deixou entrar."

Segundo Ronald Capita, nenhum dos cinco estádios que conheceu até hoje dispõe de acessibilidade a cadeirantes. No Javari, casa do Juventus da Mooca, novo ambiente inóspito seguido de constrangimento: "Antes de entrar, começou a chover. Os policiais presentes falaram que a área dos cadeirantes não era coberta e que não podiam se responsabilizar", comenta.

Citando um dos poucos casos em que desfrutou da inclusão, o menino contou como foi gravar o 'Boletim do Capita' para a Corinthians TV, canal oficial do clube no Youtube. O quadro repercutiu os passos do Sub-20 na Copinha de 2018.

"A gente fez a primeira gravação e, para me ajudar, tinha um produtor, por conta da visão. Uma coisa que vejo nisso é: além de ter a oportunidade trabalhar, eu vejo que essa atitude do Corinthians não só mostra a gradeza do clube, mas uma maneira de promover a inclusão, que é algo que tanto luto."

"Quero falar por tantas outras pessoas que estão lutando. Até por isso quero fazer ações em outros clubes, para levar esse plano adiante."

Sonho de estudar jornalismo e planos para o futuro

Autor de inúmeros textos, o garoto, que só na oitava série não precisou pausar os estudos para ser operado, tem o jornalismo como objetivo profissional. Espectador de telejornais e programas esportivos desde sempre, teve de se adaptar para não 'enferrujar' na escrita - atividade que demonstra dominar. Clique aqui para conferir alguns de seus relatos.

"Como eu faltei muito na escola, perdi muito conteúdo. E as pessoas me questionam como eu escrevo bem se não aprendi muitas regras de português. Mas eu escrevia meus textos e mandava para alguém analisar, sempre. E quando eu ficava parado, mandava os que eu já tinha escrito para repórteres, sites e pegava dicas. Ou lia textos e tentava entender não só a história, mas a escrita."

Ronald adota posicionamento consciente acerca dos próximos passos. Atualmente, faz fisioterapia cinco vezes por semana e tem acompanhamento psicológico às terças. Todos os planos e desejos que tinha foram, por ora, reduzidos à opção de agradecer ao ver a vida acontecendo um dia de cada vez.

"Hoje, por condições de saúde, prefiro não focar muito no futuro. Eu tinha vários sonhos, fazer faculdade, estudar jornalismo, trabalhar com jornalismo... Mas em 2017 tive de abrir mão de muita coisa. Vi que o maior sonho de uma pessoa não deve ser bens materiais, coisas que almejamos, mas sim viver a cada dia e ser grato por isso. Quantas pessoas podem viver esse sonho que a gente está vivendo agora?"

'A vida me ensinou a caminhar. Saber cair depois se levantar', trecho da música do rapper MV Bill, embala as lutas de Ronald.

Nova palestra com o Sub-20 do Corinthians aconteceu em janeiro de 2018

Nova palestra com o Sub-20 do Corinthians aconteceu em janeiro de 2018

Rodrigo Gazzanel/Ag. Corinthians

E por fim...

Para pôr fim a esta coluna, deixo abaixo alguns trechos da entrevista com o amuleto do Timãozinho, realizada no Parque São Jorge, para inspirar você, leitor e torcedor, num dia difícil.

Aproveito para agradecer Antônio Fernandes, tio de Ronald, que o acompanha em todos os seus compromissos. Foi da relação entre os dois 'capitães' que o apelido Capita surgiu.

  • "Eu andava até os 9 anos, hoje eu uso a cadeira de rodas. Para muitos a cadeira é um problema, mas para mim não é, porque é ela que me faz andar";
  • "Todas essas coisas que acontecem não são um problema de fato, mas uma forma de me adaptar à vida e a enxergar que tem outras condições, não só o convencional";
  • "Por meio da minha vida e todas essas lutas, quero representar as pessoas com deficiência. O meu sonho é voltar a andar, mas, se não der, eu não vou sofrer por isso. Mesmo com todos os problemas, sou feliz desse jeito. E acho que o fato de ser feliz mesmo com tantos problemas é uma forma de mostrar que sou grato pela vida".

Nota de redação: Ronald Capita, como era conhecido, faleceu no dia 28 de novembro de 2019. O Meu Timão lamenta a partida desse jovem, exemplo para tantos.

Veja mais em: Base do Corinthians, Corinthians Sub-20 e Torcida do Corinthians.

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Por Rafaela De Oliveira

Acadêmica em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e de olho na base do Corinthians.

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